terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Brésil, terre d´avenir



Stefan Zweig nunca foi lá muito popular nos países de língua inglesa, ao contrário da Europa continental, onde gozou de bom prestígio, especialmente entre as décadas de 30 e 40. Foi justamente em um desses países, na França, que encontrei uma tradução de suas obras. "Le Brésil, terre d´avenir" não foi exatamente um de seus maiores sucessos. Hoje, no entanto, a obra ganha destaque por tratar de um tema na moda entre as conversas das gentes que pensam o mundo.

Zweig concebeu esse livro no final de sua vida. De família judia, na década de 30 fugiu para a América da crescente loucura europeia, em especial do nazismo nas regiões teutônicas. Depois de um período nos EUA, em 1940 chegou ao Brasil. Aqui, o escritor acreditou ter encontrado o que poderia ser uma alternativa às sociedades europeias, então em franco processo de aniquilação. Ironicamente, em 1942, Zweig se suicidou com a esposa em Petrópolis.

Passados 70 anos, a distância temporal nos ajuda a melhor pesar o conteúdo, o contexto e a recepção da obra, principalmente por parte dos pensadores Brasileiros. No livro, há um bom resgate histórico do Brasil até o início do século XX. Zweig faz, ainda, ótimas descrições de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, o que faz a obra se tornar um documento histórico, cujo valor aumenta proporcionalmente com o passar dos anos.

É justamente a capacidade de olhar histórico de Zweig que faz a obra ser de relevância para o pensamento brasileiro. Foi provavelmente ele um dos primeiros a sair da linha historiográfica tradicional tupiniquim. Provavelmente para os leitores contemporâneo não haja muitas novidades. Mas tal deve ocorrer pelo fato de boa parte das análises de Zweig terem sido incorporadas por outros autores posteriores. O autríaco foi provavelmente um dos primeiros a reconhecer a importância de Dom João VI e falar, com todas as letras, que o ano da criação da nação brasileira foi o ano de 1808.

Há ainda outras figuras e instituições relembradas, como o caso dos Jesuítas. Segundo Zweig, foram eles o primeiros a pensar e agir a longo prazo, os primeiros estadistas - mais do que o próprio estado português - a vislumbrar as possibilidades da colônia recém-descoberta.

No capítulo sobre a história econômica, mais uma vez Zweig traz insights enclarecedores. Ali, antes mesmo da obra de Celso Furtado, já se esboça com clareza e riqueza de dados o modelo de ciclos econômicos e mostra-se como eles foram essenciais para a ocupação das diferentes regiões brasileiras.

Os pontos mais problemáticos do "Brésil, terre d´avenir", nascem principalmente da época extremada em que ele foi concebido. Para um pacifista, erudito e judeu deveria ser de fato bastante complicado produzir qualquer material sem uma forte carga subjetiva. Em um contexto de regimes totalitários, quase tudo acabou tendo um sentido ideológica e uma função engajada. Assim, a comparação que Zweig promove não tem hoje em dia a mesma aplicabilidade. De fato, qualquer sociedade, quando comparada com a da alemanha nazista, parecerá em geral mais humanizada. Isso explica, provavelmente, o deslumbramento de Zweig com o Brasil.

Mesmo que estivéssemos também sob uma ditadura, na visão do autríaco, aqui tinhámos o que de melhor poderia haver em democracia racial. Escrevia ele, por exemplo: "Les classes les plus variées s´abordent avec une politesse et une cordialité qui étonnent toujours les hommes d´une Europe cruellement retournée à la barbarie [...] tout ce qui est brutal répugne au Brésilien".

Em parte, podemos atribuir essa visão a uma análise superficial de Zweig. Mas devemos reconhecer também que o Brasil muito mudou nas últimas décadas. Ele mesmo já havia observado que o Brasil, ao contrário de outros países já maduros, se caracterizava pela capacidade de se reinventar rapidamente, com a história não por trás, mas pela frente. Tudo estava sendo criado do zero.

O que o autríaco não poderia prever é como esse processo ocorreria. Em suma, imaginava que o Brasil poderia ser construído aperfeiçoando-se todos problemas que faziam a Europa implodir e explodir na década de 40. Aqui havia uma única língua, não havia uma violência sistemática e organizada contra etnias e religiões, não havia problemas territoriais, mesmo considerando as dimensões continentais, e o principal: aqui, todas raças podiam se misturar livremente.

Sobre todos pontos enumerados no livro, podemos reanalisá-los e classificá-los em três grupos: primeiro, aquilo que Zweig simplesmente se equivocou e romantizou; segundo, aquilo que Zweig analisou corretamente à época, mas que hoje em dia não se aplica; terceiro, aquilo que Zweig acertou.

Sobre a pretensa igualdade de raças, sobre o trato igualitário das diferentes classes, Zweig apenas tinha uma visão superficial e romântica. O estrangeiro não conseguiu perceber o gigantesco desnível entre as classes sociais, uma tensão que era disfarçada sob a cordialidade e a ausência de uma discussão social nacional à época.

Um outro equívoco. "Tout ce que nous appelons aujourd´hui brésilien ou que nos reconnaissons comme tel, ne peut être défini par une tradition propre, mais uniquement par une transformation créatrice de l´européen par le climat, par le pays et ses habitants", escrevia. Mais uma vez, Zweig toma o referencial europeu como o único. Como europeu, ele procurou os traços europeus no Brasil, que são muitos e, de certa forma, aqueles que fazem o Brasil ser o que é na arena internacional, especialmente orientada por valores europeus.

Mas a cultura dos povos indígenas, ainda que não tenha sido a dominante, formou um substrato sob a qual um país aos moldes europeus tentou ou tenta ser erguido. Na língua, na culinária, nas relações sociais e políticas, na persistência de economias de subsistência, em quase todos setores há um variável grau de mescla com as culturas indígenas.

Isso sem contar a influência das culturas de nações africanas, essas, talvez, mais marcantes que as indígenas. Como as culturas dos povos africanos tinham condições plenas de rivalizar com as europeias, muitas vezes a postura do colonizador com elas era muito mais enérgica, no sentido de sufocar, do que era com as indígenas.

Passemos, então, ao pontos cuja análise de Zweig, mesmo que acertada à época, hoje não mais se sustenta. O Brasil deixou de ser uma nação rural, de 40 milhões de habitantes, para ser um país com 200 milhões de habitantes e com uma força econômica, política - diria até mesmo cultural em certos aspectos - emergente no cenário mundial. A complexidade da sociedade brasileira, sob todos os aspectos, aumentou muito. Nesse processo, muito dos aspectos, alguns negativos, outros positivos, estão ficando para trás. A índole pouco belicosa, suave, pacífica, do brasileiro cada vez mais é algo do passado. O Brasil é hoje um dos países mais violentos do mundo, como as estatísticas de mortes violentas não desmentem. Não temos a violência ideológica de grupos organizados como em outros países. O que temos é uma violência quase niilista, fruto da entrada do sociedade de consumo pós-moderna em um nação ainda muito jovem para contrabalanceâ-la.

Por fim, falemos da qualidades que ainda continuam válidas. Continuamos tendo um país com uma língua única e inconteste, um país continental com separatismo irrisório e sem problemas com estados fronteiros. O Brasil continua crescendo, cumprindo a visão de Zweig, independente e apesar de tudo do que digamos ou façamos dele. Não é impossível que viremos uma potência no futuro - muito dizem que é mesmo provável que tal ocorra. Zweig falava mais, na possibilidade, ainda que romântica, de sermos um modelo de sociedade.

Passado mais de 70 anos, adentrando um século em que conjutura histórica se apresenta favorável ao país, a discussão muda de foco. Economicamente parecer ser mera questão de tempo para nos consolidarmos como aquele gigante. Mas quanto a ser um modelo de sociedade para o mundo, para isso ainda precisaremos de mais alguns séculos antes de repetir a pergunta e poder ter uma resposta positiva segura. Escrevesse Zweig nos dias de hoje, dificilmente teria tanta certeza sobre podermos ser um modelo de sociedade. Com a mesma perspicácia que viu os europeus indo para ruína, talvez ele também visse os erros estratégicos que poderão nos impedir de consolidar essa possibilidade de país do futuro.

Um comentário:

  1. Abaixo coloco um link que ilustra como a violência no Brasil aumentou nos últimos anos:
    http://br.noticias.yahoo.com/30-anos-pa%C3%ADs-teve-milh%C3%A3o-v%C3%ADtimas-homic%C3%ADdio-133217673.html

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