terça-feira, 1 de junho de 2010

O nosso democrático Estado

Espanto e, principalmente, tristeza são o que sobressai de mais uma rodada de diálogo entre Estado e sociedade em Florianópolis sobre o transporte público da capital. As cenas repetidas todos anos, de estudantes, jornalistas, tolhidos pela violência policial do direito de opinião, são sintomas inconfundíveis de que algo ainda anda muito mal em nossa sociedade. Não falo especificamente da passagem mais cara do Brasil, mas de problemas mais profundos.

Qualquer pessoa que mora em cidades com mais de 300 mil habitantes já sente na pele dois flagelos desse Brasil do terceiro milênio: violência e transporte urbano. Sob diversas faces – assaltos, má educação das pessoas, intolerância, truculência policial – a violência já é algo que há décadas incomoda o país. Não convém entrar em detalhes, posto que o assunto é, por si, autoexplicativo.

A questão do deslocamento urbano é tema urgente. Completamos meio século de indústria automobilística instalada em nosso país. Juntamente com políticas equivocadas, como descaso com transporte público, reduções de IPI, financiamento privado destinado a compra do carro próprio, chegou-se a um ponto de colapso do transporte dentro das grandes cidades. Engarrafamentos são deseconômicos sob todos pontos de vista, poluidores, e verdadeiros estorvos para quem dirige.

Não sei se a população de Florianópolis está atenta para ambos problemas. Mas parte da juventude manezinha demonstra, no entanto, desde 2003, ter percebido a conexão entre o gargalo econômico social do transporte e a evidente solução, investimento em transporte público eficaz e eficiente. Por isso, desde daquele ano vem se manifestando com menos ou mais força contra decisões públicas que apenas pioram os problemas.

Eis então que releva-se um outro problema muito mais grave. Demonstrando total ignorância, ou puro desrespeito, aos processos democráticos de diálogo social, o Estado Catarinense sistematicamente sufoca as manifestações com a elite militar que tem à disposição, as tropas do GRT (o BOPE de SC). Desproporção de força é pimenta nos olhos dos estudantes, com o perdão do mau gosto do trocadilho. Maliciosamente, confundem-se cidadãos em pleno gozo de seus direitos políticos com criminosos e baderneiros. Como somos um país violento, anestesiados, perdemos lentamente o juízo e a noção do que seja uma discussão social pacífica e democrática. Social ainda é caso de polícia.

Mas o Estado não se equivoca assim sem fortes motivos. A chave da explicação passa por Raymundo Faoro, um quase catarinense de Vacaria e que tive a felicidade lê-lo na biblioteca da Udesc, local que assistiu de camarote a ação do GRT nesse mês. No clássico Os donos do Poder, Faoro retomava o conceito de Weber sobre o estado patrimonial para explicar a política brasileira. Herança lusitana, o estado patrimonial é aquele em que uma minoria social domina o estado.

Ingênuamente, pensava que a evolução do estado brasileiro e a nossa “pujante” economia democrática tornariam tal explicação teórica cada vez mais desnecessária. Ledo e triste engano. Santa Catarina é o exemplo vivo de como o estamento político, famílias Bornhausen, Amim, Berger, se apropriam do estado e assim o utilizam contra os interesses antagônicos, mesmo quando os últimos são legítimamente populares. Só não vê quem não quer. Em nome de um situação favorável a uma elite política, retira-se violentamente do povo dois direitos de um só vez: o de opinião e de livre deslocamento pelas cidades.

Não sei se sou pessimista. Admiro amigos meus que nesse certame público já levaram bala de borracha, pimenta no olho, foram presos. Mas nessas horas fico muito descrente com um final feliz para a história. Penso que a solução passaria para uma discussão nacional, fugindo da arena política viciada dessa minha querida Santa Catarina. Mas ao mesmo tempo, temo que tal estrutura de poder se repita em âmbito nacional – explicando porque em uma década, século, pouco foi mudado. Eleições estão próximas. Vejamos o que acontece.


Fonte fotos:

http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default.jsp?uf=2&local=18&section=Geral&newsID=a2912336.xml

http://sambaquinarede2.blogspot.com/2010/06/blog-post_828.html